Profusão de obras acentua carências e despreparo

Por Bianca Pyl

No efervescente e festejado setor da construção civil, condições aviltantes classificadas como trabalho escravo convivem com o desprezo a multas e a interdições. Entre diversas irregularidades constatadas, acordos firmados com autoridades são abertamente descumpridos e salários de trabalhadores não são pagos.

A Repórter Brasil foi a campo para acompanhar inspeções de auditores fiscais do trabalho na região de Campinas (SP), interior de São Paulo, e se deparou com uma constelação de irregularidades.

Operários com mais de dois meses de trabalho sem nenhum dia de folga, jornadas de trabalho de até 17 horas e gente obrigada a dormir dentro do guarda-roupa por causa da superlotação do alojamento, muitos deles bem aquém dos padrões exigidos. Aliciamento ilegal, acidentes e falta de capacitação e treinamento para tarefas perigosas que, entre uma série de outras pendências relacionadas às normas de saúde e segurança, colocam em risco a própria vida de quem trabalha nos canteiros de obra.

Relatos dão conta de operários despreparados que permaneciam por quatro horas dentro de um perigoso buraco no solo para ampliação do sistema saneamento básico, em contato direto com esgoto.

Balanço parcial feito no ano passado pela Gerência Regional de Trabalho e Emprego (GRTE) de Campinas (SP) contabilizava mais de 500 autos de infração lavrados contra empresas de construção civil. “No começo de 2011, nós recebíamos todo dia uma denúncia de alojamentos em condições degradantes, de trabalhadores sem ter onde ficar, sem remuneração, com dívida. Mas a coisa foi piorando e chegou ao ponto de termos até três denúncias diárias e urgentes”, conta Sebastião Jesus da Silva, que comanda a GRTE. A situação é pior em períodos de chuva e para os que recebem por produção.

O aumento das denúncias não foi acompanhado pelo incremento de servidores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Somente 12 auditores realizam fiscalizações in loco em 34 municípios da região. “A gente não tem condições de atender todas as denúncias”, admite Sebastião. O drama é ainda maior, pois parte dos poucos que estão em atividade em breve deve se aposentar.

Eleonora Bordini Coca, da Procuradora Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT-15), não tem dúvidas: faltou planejamento no processo de expansão da construção civil. “Dezenas de trabalhadores vindos de outros estados são colocados em alojamentos precários. Tenho certeza que o setor não pensou em como receber essas pessoas”, avalia. “Se pretendem utilizar mão de obra que vem de fora, a responsabilidade é muito maior. Estão tirando o empregado de seu lar, e é necessário oferecer habitação de acordo com a lei”, completa.

Entre janeiro e outubro de 2011, a PRT-15 firmou 70 Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com empresas de construção e instalou 166 procedimentos que dizem respeito a pendências no setor. Em 2010, foram 44 TACs ao longo de todo ano.

Durante dois dias, a reportagem acompanhou Antonio Avancini, Márcia Marques e João Batista Amâncio, auditores fiscais da GRTE em Campinas (SP), em setembro do ano passado. Eles atenderam duas denúncias de trabalhadores na obras de expansão da rede de tratamento de esgoto em Mogi Mirim (SP) e no canteiro em que está sendo construído o novo centro de processamento de dados e informações (Data Center) do Banco Santander.

Contextualização

Notícias sobre trabalho análogo à escravidão em obras de construção civil no interior e na capital paulista se multiplicaram nos últimos tempos. Nos três primeiros meses do ano passado, o número de denúncias contra empresas do setor que atuam na Região Metropolitana de Campinas aumentou 50% (de 17, em 2010, para 25, em 2011), conforme a PRT-15. Auditores fiscais e procuradores do trabalho chegaram a flagrar condições degradantes e desumanas em alojamentos, além de outras diversas irregularidades graves que colocavam em risco a segurança e saúde de operários. Aliciamento ilegal, servidão por dívida, retenção de documentos e falta de pagamento de salários também foram constatados pelos agentes públicos.

Três empreiteiros chegaram a ser presos em flagrante por crime de escravidão no bairro Jardim Florence, em Campinas (SP), em março de 2011. Arregimentados por “gatos” (aliciadores de mão de obra) no Maranhão para atuar em obra das companhias Goldfarb e Odebrecht, os trabalhadores acabaram recebendo os valores a que tinham direito das empreiteiras, que se responsabilizaram pela situação e regularizaram os alojamentos. Assim como em outros casos, as vítimas eram oriundas de áreas pobres do Nordeste. O corte da cana, antigo destino dos migrantes, está sendo trocado pela construção civil frente à demanda por força de trabalho em construções e reformas.

A sucessão de ocorrências suscitou a instauração, em março de 2011, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal. Os vereadores da comissão reiteraram a preocupação, no relatório final, com a exploração de trabalho escravo na área da construção civil. Recomendações que foram feitas pela CPI estão sendo analisadas pelos órgãos que lidam diretamente com a questão como o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP) e o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústria da Construção e do Mobiliário de Campinas.

Um termo de cooperação assinado previamente pela Prefeitura de Campinas (SP), pelo MPT e pelo MTE exige que os responsáveis técnicos assumam o compromisso de cumprimento da Norma Regulamentadora (NR) 18 para a liberação do alvará de empreendimentos, sob risco de embargo das obras. Para auxiliar os empregadores, a PRT-15 disponibilizou em seu site na internet uma tabela, em formato de checklist, com os itens que devem ser conferidos.

Impulsionado por isenções tributárias, pelos financiamentos de habitação (Minha Casa, Minha Vida) e por obras de infra-estrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o setor da construção civil é um dos que mais cresce no país. Contribuem para aquecer ainda mais a economia da construção civil os preparativos (estádios, vias para transporte, instalações etc.) para a Copa do Mundo de 2014 e também para os Jogos Olímpicos de 2016, que serão realizados no Rio de Janeiro. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o incremento no setor durante o 1º semestre de 2011 foi de 15,7% na comparação com o mesmo período de 2010.

Continuação:
2. Terceirizações ilegais estão na base dos problemas
3. Descumprimento de interdições acaba em prisão
4. Operários sem treinamento correm risco de morte
5. Libertações sucessivas são realizadas em canteiros

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5 Responses

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  5. Adalberto de souza says:

    O despreparo do trabalhador é reflexo da falta de politicas públicas derecionadas para prevenção de acidentes no Brasil, que é um dos campões mundicais em acidentes do trabalho.