Contradições marcam avanço do agronegócio

Por Antônio Biondi e Maurício Hashizume

Havia algo de inusitado na série de fiscalizações trabalhistas realizadas em diversas propriedades rurais geridas pelo poderoso grupo argentino El Tejar em diversos pontos de Mato Grosso, no início de abril de 2010. A denúncia que motivou a inspeção de combate ao trabalho escravo partira de uma “fonte” incomum: a influente e temida Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso (Famato), principal entidade de articulação dos ruralistas no Estado.

Procuradores do trabalho envolvidos na operação chegaram a apontar irregularidades encontradas no ambiente rural – especialmente quanto à prática de terceirização de atividades a subcontratadas, instalações inadequadas e falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) – sob responsabilidade dos argentinos, mas os auditores fiscais que estiveram nos locais não chegaram a libertar empregados de condições análogas à escravidão. A empresa, de acordo com a própria Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região (PRT-23), não foi acionada judicialmente e acabou assinando Termos de Ajustamento de Condutas (TACs) sem indenizações de dano moral, apenas com obrigações de fazer e não fazer, em Sinop (MT), Cuiabá (MT) e Rondonópolis (MT).

Incomodada com a expansão geométrica da El Tejar, os ruralistas ironicamente se utilizaram de um recurso ao qual eles publicamente abominam para acusar a “concorrência”. Sempre que podem, produtores rurais – como o deputado federal Homero Pereira (PSD-MT), que por anos foi presidente da Famato – tentam colocar em xeque o “conceito” de trabalho escravo (que consta do Art. 149 do Código Penal). Ao denunciar formalmente os hermanos que atuam no mesmo mercado de indícios de escravidão, os latifundiários expuseram a “utilização seletiva” da lei com vistas a interesses particulares.

Em audiência pública realizada no final de setembro de 2011 na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) da Câmara dos Deputados, o deputado Homero foi enfático na sua discordância com relação aos termos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, conhecida como PEC do Trabalho Escravo. Trata-se de proposta que prevê o confisco de terras daqueles que forem flagrados explorando mão de obra escrava.

Na visão do parlamentar ruralista, a aprovação da emenda deixaria propriedades rurais sob risco de serem expropriadas apenas “à luz da interpretação de um fiscal”. “Não concordamos com o conceito de trabalho escravo”, reiterou, enfático, durante as discussões.

O episódio é apenas mais um entre muitos que mostram a face sem retoques do “vale-tudo em benefício próprio conduzido pelos grandes proprietários rurais, que gozam de amplos poderes (políticos e econômicos) e robusta estrutura. O poder de fogo do agronegócio – e os resultados contraditórios do modelo em que se baseia – podem ser comprovados por balanços de organizações da sociedade civil como o Relatório Estadual de Direitos Humanos do Mato Grosso.

Contextualização

Estudo realizado pelo Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea) com foco nos 20 maiores produtores de soja do Estado confirmou o que já se esperava. Houve, nos últimos anos, um aumento de concentração de terras. Na safra de 2004/2005, esses 20 maiores plantavam em 9% da área tomada pelas plantações do grão no Estado, o que equivale a 533,7 mil hectares. Na contabilização relativa à safra de 2008/2010, os “top 20” da soja ampliaram o seu domínio para 20%, alcançando 1,2 milhão de hectares.

O Relatório Estadual de Direitos Humanos e da Terra , elaborado pelo Fórum de Direitos Humanos e da Terra do Mato Grosso, apresenta dados que complementam esse cenário. As propriedades com mais de 2,5 mil hectares, que correspondem a 3,35% dos estabelecimentos registrados, ocupam 61,57% das áreas cultiváveis. As pequenas propriedades com menos de 10 hectares, por sua vez, representam 13,38% dos imóveis rurais, ocupam apenas 0,13% do mesmo conjunto de terras.

O agronegócio é responsável por 70% do Produto Interno bruto (PIB) de Mato Grosso. Em alguns municípios do interior em que a atividade é insinuante, esse número sobre para o patamar de 90%. De 1990 a 2005, a área plantada de soja no Estado quadruplicou, saltando de 15 mil km² para 61 mil km². No mesmo período, o rebanho bovino triplicou, passando de 9 milhões para 27 milhões de cabeças. A pujança do setor, entretanto, traduz-se no que um pesquisador que analisou a região chamou de “campos ricos de grãos e pobres de gente e cultura” .

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) 2009, a pobreza atinge uma parcela de 1,07 milhão de pessoas que vivem no Estado, sendo que 804 mil padecem em condições de pobreza absoluta (renda até meio salário mínimo). A renda mensal per capita dos 40% mais ricos é de R$ 2.987,62 e a dos 10% mais pobres é de míseros R$ 106,58. Somente 11,1% da população mato-grossense têm rede coletora de esgoto nos seus lares e apenas 4,4% dispõem de fossa séptica liga à rede.

O desequilíbrio nas políticas públicas também se aplica ao campo ambiental. No ano de 2010, a Assembléia Legislativa do Estado aprovou, em poucos meses, o polêmico projeto de Zoneamento Socioeconômico e Ecológico de Mato Grosso (ZSEE), sugerido primeiramente pelo Executivo estadual. A iniciativa de tramitação expressa contou com o apoio do governador Silval Barbosa (PMDB). Mesmo diante da reação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, cobrando mais respeito aos princípios democráticos, transparência e debates – e que, organizados em torno do Grupo de Trabalho e Mobilização Social (GTMS), chegaram a promover dois “enterros do ZSEE” em 2010 –, o governador ratificou a proposta em abril de 2011.

Com isso, segundo a avaliação de Denize Amorim, do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental (GPEA) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), “ficou evidente que tanto o Poder Legislativo quanto o Executivo estão alinhados para tornar Mato Grosso uma terra de produção apenas para o agronegócio, em detrimento aos mananciais hídricos, às florestas, aos pantanais, ao cerrado, ao direito à terra e à cultura dos povos indígenas e de grupos sociais que vivem há centenas de anos no território e que formam a história e a biodiversidade mato-grossense”. Os movimentos sociais continuam se posicionando contra o projeto aprovado de ZSEE e pedem o veto tanto do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) ou do Executivo federal, além de apoiar as ações do Ministério Público Estadual (MPE) e o Ministério Público Federal (MPF) que contestam a legitimidade do processo.

Continuação:
2. Nacionalismo ruralista não resiste à chance de lucro
3. Presença estrangeira se combina com especulação
4. Rastreamento mostra alta concentração no setor
5. Maraiwatsede símboliza poderio da “lei do mais forte”

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