Escravidão sulina apresenta traços peculiares

Por Maurício Hashizume

Baixas temperaturas no meio da mata e recrutamento “local” são características (Foto: MPT)

“Parecia que a gente não tinha trabalho escravo aqui [na Região Sul]. É uma região com uma qualidade de vida melhor, com um [nível de condições de] trabalho melhor”, destaca a auditora Luize Surkamp, que recebeu a incumbência de coordenar uma equipe do grupo móvel de fiscalização e combate ao trabalho escravo dedicada a vasculhar as condições de labuta praticadas em empreendimentos rurais meridionais. “Mas começamos a perceber que também tínhamos situações aqui tão ou mais graves do que em outras regiões ´tradicionais´ que já conhecíamos com casos de trabalho escravo”.

A despeito de semelhanças com casos descortinados em fazendas país afora, algumas peculiaridades podem ser atribuídas à escravidão sulina. Além do já citado frio (que chega a atingir graus centígrados abaixo de zero), as operações dependem de uma investigação prévia e de inteligência, visto que as denúncias encaminhadas por entidades da sociedade civil e por particulares são lamentavelmente escassas. Em grande medida, os resgatados nos Estados do Sul não se encaixam na categoria de migrantes, pois mantém suas moradias fixas em áreas próximas aos locais de trabalho.

Prática recorrente em libertações nas áreas de expansão agrícola do Cerrado e da Amazônia – e também em empreendimentos urbanos do Sudeste -, o aliciamento ilegal não é tão comum na zona meridional. Ou seja, o combate a essa versão mais pulverizada e velada do crime tende a ser um desafio extra aos agentes não só do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mas também do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Polícia Federal (PF), da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e de outros órgãos como o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público Estadual (MPE) e a Justiça Federal.

O recurso às terceirizações é outro aspecto que corrobora para incrementar a complexidade das fiscalizações. “É preciso esmiuçar muito mais as questões que são apresentadas, pois aparentemente a situação elas parecem estar regulares. Você encontra, por exemplo, um ´gato´ (aquele que arregimenta mão de obra) melhorado, com uma empresa constituída, que eles chamam de ´empreiteiro´”, explica Luize.” Esse empreiteiro contrata o trabalhador e entrega o EPI [Equipamento de Proteção Individual], mas depois desconta. Entrega ainda a ferramenta de trabalho, mas também desconta depois. Você tem uma dificuldade muito maior de encontrar a irregularidade porque a situação aparentemente parece regular”.

Nesse contexto, são permitidas três distintas formas regulares de contratação: diretamente com o produtor rural, mais comum em áreas plantadas; diretamente com a indústria que compra dos pequenos produtores e extrai as folhas “no pé”, nos casos de ervais nativos; e com empresas intermediárias estruturadas que se dedicam especificamente à atividade de “compra da erva in natura, extração e venda, sem beneficiamento”, com capacidade e idoneidade para se manter como agente econômico estruturado entre os produtores e a indústria.

A diferença entre os ervais nativos, que se desenvolvem naturalmente e estão espalhados em áreas dedicadas à agricultura familiar, e os ervais plantados, já cultivados a fim de exploração econômica, consiste em traço singular da cadeia da erva-mate. Caso não sejam levadas para a indústria com celeridade, as folhas se estragam. Para dar continuidade ao processo que resulta no produto final utilizado para o preparo do apreciado chimarrão, precisam passar pela secagem, etapa que recebe o nome de “cancheamento” e resulta na redução de 30% a 40% do peso inicial da carga colhida diretamente das árvores da espécie vegetal.

Há registros, contudo, de atravessadores desestruturados que passaram a atuar irregularmente para mascarar as relações existentes entre os colhedores e a indústria. Coordenadora da fiscalização rural na Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de Santa Catarina (SRTE/SC), Lilian Rezende contesta o argumento usado pelos empresários do setor de que a relação comercial com os produtores obedece tão-somente a “lei” da oferta e da procura. “Os altos custos de extração da erva-mate [produto muito perecível] só se justificam se houver um cliente fiel. Além disso, a indústria precisa se organizar para assegurar a matéria-prima, pois não tem como operar sem ela”, frisa a auditora.

Alguns valores pagos pela indústria aos supostos “intermediários” inviabilizam o cumprimento dos direitos previstos na legislação trabalhista, adverte Lilian. É uma questão de matemática. Não é possível que com valores que se aproximam aos R$ 0,20 por 1 kg de erva vendida (média de R$ 0,60 que é pago pela indústria, com a subtração de R$ 0,30 para o dono da terra e menos cerca de R$ 0,10 para o trabalhador), por exemplo, um atravessador qualquer consiga cumprir as suas obrigações. Além do registro com carteira assinada, é preciso realizar exame médico, fornecer água potável, banheiro na frente de trabalho, local para refeição, transporte com segurança, alojamento digno, EPIs, ferramentas adequadas, e ainda pagar o contador, os tributos – como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) -, bem como arcar com os custos com o trator, os cavalos (vacinas etc.), o caminhão de transporte (combustível etc.)…

Nas fiscalizações realizadas em agosto de 2011, observou-se um sistema ainda mais camuflado: algumas ditas “indústrias” faziam apenas o “cancheamento”, submetendo trabalhadores a condições bem ruins, e atuavam como “laranjas” de indústrias maiores que realmente se aproveitavam da produção. Em Canoinhas (SC), considerada a capital mundial da erva-mate, agentes públicos encontraram uma grande companhia exportadora, com ambiente de trabalho regular, que obtinha metade de sua produção de empresas menores e precárias que, mesmo sem lastro, foram montadas para absorver uma das fases do processo produtivo.

“Em Santa Catarina, são raras as indústrias de erva-mate que cumprem a legislação trabalhista em relação ao pessoal da extração da erva. Mas são as poucas que cumprem que estão mais estruturadas e não reclamam de prejuízos”, realça a auditora Lilian.

Continuação:
1. Filhos “herdam” pobreza e escravidão dos pais
2. Trabalhadores encaram restrições e precariedades
4. Autoridades tentam ações conjuntas com patrões
5. Caminhos se fecham sem investimentos sociais

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