Por Maurício Hashizume
Empreitadas já começam com dívidas; trabalho exige grande esforço físico (Foto: MPT)
José, o pai, enfrenta isso tudo há décadas. Narra com detalhes o cotidiano do trabalho. Ele, seu filho e todos os outros trabalhadores pobres da região estão sempre no aguardo de “convocações” para empreitadas pesadas e temporárias. Logo que são arregimentados, costumam pegar “vales” antecipados de R$ 200 a R$ 300 para assegurar as compras da família. Os tais adiantamentos são convertidos em dívidas para com o empregador. Posteriormente, esses passivos são descontados dos pagamentos por produção que cada um virá a receber. Parte do salário, portanto, já fica inicialmente comprometido por conta desse mecanismo.
Muitas vezes, o local de coleta das folhas em ervais (que podem ser nativos ou “plantados”) é afastado, no meio da mata. Os empregados são levados em meios de transporte muitas vezes irregulares. “Os alojamentos, que são barracos de lona, nós fazemos quando chegamos [nos pontos de colheita]. Cortamos as estacas e as varas e montamos nós mesmos”, conta José. Para cozinhar, completa o experiente trabalhador, é feito um “fogão” improvisado, que se resume à metade de um tambor cortado sobre a lenha em chamas.
A comida também é providenciada por conta própria. “Levamos o principal: arroz, feijão, banha, um torresmo… Carne não dá para levar porque estraga”, conta José. Logo depois de acordar e tomar um café feito na fogueira coberta pelo meio tambor, a jornada já se inicia sem hora certa para acabar. “Tem que fazer a produção. Não interessa se vai almoçar meio-dia ou uma hora, ou se vai jantar seis, sete ou oito horas da noite”, declara o pai. Como a remuneração acompanha a proporção da quantidade produzida, não se costuma pagar pelos dias de chuva em que os empregados ficam parados na mata.
Para subir nas árvores de erva-mate, eles usam esporas (“pé de ferro”). Tiram o galho com as folhas e fazem a “bola”, também denominados “raídos”. Em média, esses “fardos” pesam entre 70 kg a 100 kg e, não raro, são erguidos e colocados em cima da caçamba de caminhões apenas com a força física dos colhedores. “Dá para fazer ´bola´ de até de 200 kg, 250 kg. Mas aí tem que ter pelo menos três ou quatro para carregar. Depende da quantidade de pessoas que têm no mato”, observa o pai que já foi escravizado.
“Tem que forcejar”, completa José. Animais são utilizados para levar as “bolas” até os pontos em que os caminhões são carregados com o produto. “Quando era mais novo, carreguei muito nas costas. Não tinha cavalo para arrastar”, relembra. O fato de ter “enjoado” de carregar 70 kg a 80 kg nas costas é apontado por ele como provável explicação para as dores agudas e constantes que sente pelo corpo. Os esforços não são menores no serviço de corte de árvores (pinus) para a indústria madeireira, outro notório ramo econômico da Região Sul que vem sendo envolvido seguidamente em casos de trabalho escravo. José já atuou nessa outra área, que exige muita disposição e força física. De acordo com ele, os empregados, em geral, não recebem treinamento adequado para a derrubada de toras com motosserras. A produção madeireira com ajuda de cavalos e, assim como no caso da erva-mate, ainda têm de ser colocada nos caminhões para escoamento. “É pesado também”, conclui.
Carlos, o filho, não tem dúvidas do que menos agrada na função em que debutou aos 16 anos, mesma idade que seu pai tinha quando começou a coletar erva-mate. “O pior é carregar. Forcejar e carregar em cima do caminhão. [“Bolas” de] 60 kg. Tem que erguer nos braços até certa altura, porque tem uma hora que não dá para aguentar mais. Aí tem que ir com uma estaca e outros puxando lá de cima. É complicado”.
“Não tem como dizer: hoje eu não vou. Se você não vai, o que você ´fez´ de erva fica lá no mato. Ninguém vai carregar para você”, adiciona o jovem, que desfruta de seus “20 e poucos anos”, mas já conhece a paternidade. Cada trabalhador colhe mais de 350 kg de erva-mate por dia de serviço. Houve quem extraísse, conforme relatos, até 700 kg em um único dia.
Antes da ocasião em que tiveram as verbas trabalhistas pagas em decorrência da inspeção promovida pelo grupo móvel interinstitucional de combate ao trabalho escravo, pai e filho já tinham passado por experiências traumáticas de negação dos direitos. Numa das raras vezes em que conseguiram o registro em carteira, os dois acabaram demitidos de uma vez só e ainda foram obrigados a assinar a rescisão como se tivessem pedido eles próprios o desligamento.
Todos os que se submetem a empreitadas desse tipo na região – seja na erva-mate, no corte de pinus ou eucalipto ou em outra atividade similar – têm uma história parecida em que a falta de oportunidades é a grande protagonista, avalia o progenitor José que, além de Carlos, tem também outras filhas em idade escolar. Mesmo com todas as dificuldades clima, José consegue demonstrar algum otimismo. “A esperança da gente de que melhore é sempre grande, né?”, pontua. “Mas não é fácil. Eu tenho história. Tem uns 30 anos que trabalho nessa luta aí e não é fácil, não é fácil…”
Continuação:
1. Filhos “herdam” pobreza e escravidão dos pais
3. Escravidão sulina apresenta traços peculiares
4. Autoridades tentam ações conjuntas com patrões
5. Caminhos se fecham sem investimentos sociais
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